Euclides da Cunha: uma vida de superação, movida pela paixão e pelas tragédias pessoais. Sua ligação com a Guerra de Canudos.


Euclides da Cunha, retratado por Cândido Portinari
“Que o teu trabalho seja perfeito para que, mesmo depois da tua morte, ele permaneça.” – Leonardo da Vinci

Viva a República! – bradou um jovem Cadete da Escola Militar da Praia Vermelha, ao sair da formação de tropa e jogar sua carabina e seu sabre-baioneta aos pés do Ministro da Guerra do Império, Tomás Coelho. Este, que visitava a Escola e passava em revista à tropa. A visita e o desfile militar em honra ao Ministro, fora estrategicamente marcados, a fim de evitar que os Cadetes (na sua maioria, positivistas e defensores da República) participassem das manifestações republicanas, que explodiam por todo o Rio de Janeiro, naquele ano de 1888. O jovem Cadete de 22 anos, sabia o risco que sua vida corria ao realizar tal ato de protesto. Mas estava obstinado. O protesto deveria chamar a atenção para a falta de direito dos militares em defender sua expressão política e seu descontentamento com o Império. Preso imediatamente por desacato, aquele Cadete “arrogante” poderia ser condenado à morte por enforcamento, por motivo de indisciplina, à luz do código disciplinar militar. Porém, diante da repercussão que o ato daquele jovem teve na imprensa carioca e no Parlamento brasileiro, foi “perdoado” e “apenas” excluído do Exército, sob a alegação de “incapacidade física”. O Cadete de quem estamos falando era o jovem Euclides da Cunha.
Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu no dia 20 de janeiro de 1866, na Fazenda Saudade, em Cantagalo, região serrana no vale do rio Paraíba do Sul, na província do Rio de Janeiro, onde viveu até os três anos, quando sua mãe faleceu. O pai era um simples guarda livros (contador) das fazendas de café da região. Não tinha como assumir sozinho a criação e a educação do pequeno Euclides e da irmã Adélia. Foi então os irmãos passaram a viver com seus tios maternos, Rosinda e Urbano, na cidade serrana de Teresópolis/RJ, já em 1869. Com a morte da tia Rosinda, foram morar com outro casal de tios maternos, em São Fidélis/RJ. Por um curto período, Euclides foi morar com a avó paterna na Bahia, mas retornou logo ao Rio de Janeiro. Ainda dependendo do apoio de tios, em 1885 ingressou na Escola Politécnica, a fim de cursar Engenharia, mas só conseguiu frequentar um ano, justo por falta de recursos financeiros. Nesta segunda metade do século XIX o Imperador D. Pedro II governava um país dominado por grandes propriedades de terras e escravos. Eram poucas as possibilidades de ascensão social de um jovem de origem simples, sem recursos financeiros, sem apadrinhamento algum e que vivia como agregado na casa de tios. Mas ele não desistiu.
Em 1886, matriculou-se na Escola Militar da Praia Vermelha, no curso de Estado-maior e Engenharia Militar. Além do curso, a Escola pagava um soldo (salário) e fornecia alojamento e comida. Alguns afirmam que a opção de Euclides pela Escola Militar da Praia Vermelha, parece ter sido uma opção pragmática. Não se sabe ao certo.
Euclides tinha entre seus colegas da Escola Militar, Cadetes que seriam mais tarde, influentes figuras da História. Um desses exemplos é o Cadete Cândido Rondon – que se tornaria mais tarde o Marechal Rondon, desbravador da Amazônia e patrono das comunicações no Brasil. O Cadete Euclides da Cunha era um ferrenho defensor da república. E como grande parte dos seus colegas da Escola Militar, era um grande admirador de um dos seus professores, que influenciava o pensamento destes Cadetes com a doutrina positivista, do francês Auguste Comte. O influente professor era o (então) Coronel Benjamim Constant. Euclides estava tomado pelas ideias positivistas e valores republicanos. Ele é definido pela historiadora Regina Abreu, autora de “O Enigma dos Sertões” como audacioso e idealista, ético e íntegro. Homem avesso à corrupção, em qualquer nível da sociedade. Chegou a escrever artigos criticando a corrupção na República e a perda dos valores que ele tanto cultuava.
Além disso, era um homem que acreditava que as ciências poderiam auxiliar os homens a entender o mundo, a fim de que estes produzissem uma sociedade mais justa e igualitária. Era um engenheiro de formação acadêmica, mas seu interesse pela ciência vinha nesse sentido: melhorias na sociedade. Tal interesse o transformou também em escritor, geógrafo, geólogo, historiador, jornalista e escritor, além da formação militar.
Após o “episódio da baioneta” – como ficou conhecido o ato de protesto de Euclides, culminando com o seu desligamento do Exército, ele foi “aconselhado” a deixar o Rio de Janeiro por algum tempo. Logo foi morar na cidade de São Paulo e lá foi bem recebido pelos republicanos paulistas. A convite do diretor do jornal “A Província de São Paulo” (que após à Proclamação da República, mudou o nome para “O Estado de São Paulo”), o sr. Júlio de Mesquita, passou a escrever uma coluna sobre política no periódico. Júlio de Mesquita – diretor do periódico que acolheu Euclides era um influente republicano, que reunia outros intelectuais também republicanos, anticlericais e antiescravagistas na sede do jornal. Isso dava livre acesso para que Euclides tivesse contato com estes homens.
No ano de 1889, logo após a Proclamação da República, Euclides da Cunha foi reincorporado com honras ao Exército, auxiliado pelo seu antes professor e agora Ministro da Guerra, Benjamin Constant. Já reincorporado e cursando Engenharia Militar, se casou com Ana Emília Ribeiro em 1890. Formou-se Engenheiro no ano de 1892. Porém quatro anos depois, solicitou que fosse reformado no Exército. Andava insatisfeito com os rumos que a República estava tomando e ainda no Exército, escrevia artigos denunciando os atos punitivos na revolta da armada e a perda dos ideais republicanos (claro, sob pseudônimos). Ao ser reformado, voltou a escrever artigos políticos para o jornal “O Estado de São Paulo”. Em 1896, ocupava o cargo de redator, quando a guerra em Canudos foi deflagrada. Todos imaginavam ser um levante monarquista e uma afronta à recém proclamada República. Euclides imbuído do mesmo pensamento (que seria revisto em “Os Sertões”) publicou alguns artigos dando como certa a vitória do governo sobre os “conselheiristas”. Então solicitou a Júlio de Mesquita, que intercedesse junto ao presidente da República Prudente de Morais, para que fizesse parte da comitiva do Ministro da Guerra, que partiria em direção ao sertão baiano. O presidente Prudente de Morais nomeou Euclides da Cunha como adido do estado-maior do Ministro da Guerra, Marechal Carlos Machado de Bittencourt (atualmente, é o cultuado patrono do Serviço de Intendência do Exército Brasileiro). Assim Euclides da Cunha ganhou a oportunidade de cobrir a 4ª Expedição contra Canudos, como correspondente do jornal “O Estado de São Paulo” e como adido militar oficial.
Já em Canudos, acompanhou, de perto, toda a movimentação de tropas e fez diversas pesquisas sobre o lugar e sobre Antônio Conselheiro. Em Monte Santo, em companhia do jornalista Alfredo Silva, fez incursões nos arredores da cidade, observando as plantas e minerais da região, sempre munido de uma caderneta, onde fez muitas anotações. Nas cercanias de Canudos, no dia 19/09, escreveu sua primeira reportagem da frente de batalha. Conselheiro morreu em 22/09, pouco antes da última investida do Exército. Euclides passeava pela cidade, anotando em sua caderneta as expressões populares e regionais que escutava, mudanças climáticas e fez diversos desenhos da cidade e das serras da região. Copiou até mesmo trechos de diários dos combatentes. Transcreveu versos populares e profecias apocalípticas, mais tarde citados em “Os Sertões”.
Por causa dos acessos de febre, Euclides foi obrigado a sair de Canudos e retornar ao Rio de Janeiro, tendo permanecido por três semanas no front. Saiu três dias antes do desfecho do massacre, que se deu em 05/10, mas não sem antes confessar no seu último artigo, um profundo desapontamento provocado pela visão de tantos feridos gemendo, amontoados no chão. Ele escreveu ao todo 34 artigos e fez 57 despachos telegráficos (que eram alvo de vigilância constante do Exército – dono do equipamento). Por esse motivo, os artigos publicados eram contidos, narrando as batalhas. Mas os dados recolhidos nas anotações e a memória foram mais tarde o principal material de produção da sua obra-prima.
Arraial de Canudos - Vista do Morro da Favela - ilustração de Euclides da Cunha
Ao retornar, no mesmo ano (1898) reassumiu seu cargo na Superintendência de Obras Públicas de São Paulo. Publicou, em “O Estado de São Paulo”, o “Excerto de um livro inédito”, que já eram trechos ainda em revisão de “Os Sertões”. Nestes escritos, iniciou a defesa da tese de que o sertanejo é um forte, cuja energia contrasta com a debilidade dos “mestiços” do litoral.
     Uma ponte recém-inaugurada, construída em São José do Rio Pardo/SP, em parte sob a fiscalização do engenheiro Euclides da Cunha e considerada a maior obra pública daquela região desabou. Ele foi pessoalmente supervisionar os trabalhos de desmontagem – que seriam demorados. Tomou então, a decisão de se mudar para a cidade, onde permaneceu até o ano de 1901. Ali, num pequeno barraco com uma mesa e uma cadeira, munido de suas anotações feitas na caderneta que sempre carregava consigo, suas memórias e seus desenhos de tipos humanos, da fauna e da flora do arraial de Canudos e seus arredores, aprofundou ainda mais suas reflexões e revisões que julgou necessárias, a fim de descrever em detalhes um Brasil até então desconhecido – o sertão. Além disso, queria reforçar a imagem que formou daqueles povos, o sertanejo forte e capaz de resistir a situações extremas. Nos seus escritos, descreveu com muitos detalhes a paisagem árida do sertão, além das ações daqueles sertanejos - bravos combatentes. Juntou ainda artigos anteriormente publicados e mesclou à sua escrita elementos dramáticos e poéticos. Nasceu então o grande épico brasileiro: “Os Sertões”. Alguns consideram o livro como o início do que é conhecido hoje por “jornalismo literário”. O fato é que foi o pioneiro num novo formato literário – algo grandioso para quem tinha Machado de Assis como herói. Euclides da Cunha é a voz que através do livro, grita até hoje a injustiça nas mortes ocorridas no arraial de Canudos. Podemos sentir isso com muita clareza, na simples leitura de uma frase:

Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo.”

Mesmo antes de lançar “Os Sertões”, Euclides já era respeitado pelo ofício de jornalista e também já era sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Foi solicitado a ministrar uma palestra sobre a “Climatologia dos sertões da Bahia”, e propôs, inclusive, a construção de açudes para resolver o problema das secas no Nordeste. Como já foi descrito, Euclides acreditava que com o apoio da ciência poderia criar melhorias para a sociedade. Isto é apenas para que possamos enxergar a dimensão da grandeza do caráter de Euclides.
Após um trabalho exaustivo de revisão, em dezembro de 1902, “Os Sertões – Campanha de Canudos” chegou às livrarias. A primeira edição se esgotou em pouco mais de dois meses e a obra foi recebida pela crítica com aplausos e também com restrições. Mas a obra foi considerada de tamanho vulto, que o fez ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, no ano de 1903. Ocupou a cadeira de número 07.
Algo muito importante a ser dito é que o livro de Euclides da Cunha não foi o único e nem o primeiro a ser lançado sobre as campanhas militares em Canudos. Outros autores o fizeram alguns anos antes e depois. Mas diante da qualidade da narrativa e do rigor impresso pelo escritor de “Os Sertões” não podem ser comparadas à obra. Assim devemos também dizer da sua participação como enviado do periódico paulista “O Estado de São Paulo” ao front. Euclides não foi o primeiro enviado. Mas foi o primeiro e único a ser enviado como correspondente do jornal paulista e ao mesmo tempo, como adido do estado-maior do Ministro da Guerra, autorizado oficialmente pelo Presidente da República Prudente de Morais. É necessário ter a clareza de tais fatos.
Primeira edição de "Os Sertões (Campanha de Canudos) - 1902
Como dissemos, Euclides era um homem da ciência. Em 1904, através de artigos de jornais, participou de debates sobre uma expedição ao rio Purus (Acre), a fim de resolver uma querela nas fronteiras entre Brasil e Peru. Euclides foi contra o envio de tropas brasileiras à região, achando ser melhor a busca de uma solução diplomática. Foi então composta uma comissão mista entre Brasil e Peru para ir até o local e tentar resolver o problema das demarcações de fronteiras. Euclides foi nomeado pelo então Ministro das Relações Exteriores, Barão do Rio Branco, como o chefe da expedição, pelo lado dos brasileiros. Antes disso, Euclides já havia negado o convite para supervisionar as obras da ferrovia Madeira-Mamoré. Em 1905 realizou a viagem heróica, entrando na Amazônia e navegando o rio Purus, com todas as dificuldades daquela expedição. Se hoje, mesmo com a presença de tecnologia (barcos com motores potentes, GPS e proteções adicionais) a tarefa já é muito difícil, imaginemos o que foi a expedição em 1905?! Euclides permaneceu fora de casa, em condições severas nessa expedição por mais de um ano. Regressou muito doente, afetado principalmente pela malária. Sua saúde já era debilitada há tempos. Essa viagem histórica, como de costume, foi toda registrada, além de estudos sobre a Amazônia. Em 1909, após a morte de Euclides da Cunha o livro póstumo contendo estes escritos foi lançado. Se chama “À Margem da História”.
Todos sabiam que seu casamento com Ana estava em crise havia muitos anos. Euclides chegou em 1906 e encontrou a esposa grávida do amante, o Cadete Dilermando de Assis. A criança nasceu morta. Mas Ana engravidou novamente do amante. Dessa vez, nasceu um menino. No período entre 1906 e 1909, Euclides da Cunha trabalhou como auxiliar do Barão do Rio Branco, publicou diversas outras obras e com a morte do seu grande herói, Machado de Assis, assumiu provisoriamente a presidência da Academia Brasileira de Letras, entregando-a a Rui Barbosa. Ainda em 1909, inscreveu-se no concurso para a cadeira de lógica do Ginásio Nacional (hoje Colégio Pedro II), no Rio de Janeiro. Obteve a segunda colocação e graças à interferência junto ao Presidente da República Nilo Peçanha e do Barão do Rio Branco, assumiu a vaga, mas por pouco tempo. Entregou nesse mesmo ano aos editores as provas de sua nova obra: “À Margem da História”.
No dia 15 de agosto de 1909, Euclides pegou um revólver emprestado com um parente, a fim de “matar um cão raivoso”. Estava disposto a lavar sua honra com sangue. O escritor descobriu o local onde sua esposa se encontrava com o jovem amante, em Cantagalo. Entrou de sobressalto na casa e alvejou o Tenente Dinorah, irmão do Cadete Dilermando. O Cadete era campeão de tiro da Escola Militar e mesmo atingido por Euclides da Cunha com três disparos, desferiu outros dois em retaliação à violência do escritor e o feriu mortalmente. Euclides da Cunha, um dos gênios literários do Brasil, faleceu no local, com apenas 46 anos de idade. Houve grande comoção pela sua morte. Um crime passional que chocou a todos. Dilermando de Assis foi julgado e inocentado, sob a alegação de legítima defesa.

Por Isaías Souza

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